terça-feira, 1 de junho de 2010

CUIDADO COM O BEDELHO

Não atire o pau no gato-to, porque isso-so, não se faz-ai-ai... AI! MINHA SANTA PACIÊNCIA!

Quem foi que começou a colocar o digníssimo bedelho nessa história?

Quer saber um pouco mais sobre o politicamente correto nas cantigas e histórias pra crianças? Então veja dois trechos ótimos de matérias da VEJA.

E do que depender da Cia Prosa dos Ventos, o gatinho (da música) vai continuar levando bordoada. Afinal, como diz a professora Lydia Hortélio, há trinta anos dedicada à pesquisa sobre canções infantis brasileiras:

"Nunca se teve notícia de uma criança que maltratou um gato porque aprendeu a cantar Atirei o Pau no Gato".

ERA UMA VEZ... O POLITICAMENTE CORRETO!

Matéria 1 - Em tempos de comportamento politicamente correto, em que canções tradicionais ganham releituras higienizadas - "Atirei o pau no gato", por exemplo, virou "Não atire o pau no gato" - era de se esperar que as narrativas orais também se imbuíssem da ideia. Mas não é bem assim.

"Tenho horror ao politicamente correto, detesto quem muda final de conto de fada e deixa lobo sozinho. Eu acho importante a criança entender as crueldades do mundo e a própria crueldade, coisa que a narração de contos permite", diz Ana Luísa Lacombe. "A criança é maldosinha, porque é egocentrada e demora a desenvolver sua generosidade em relação ao mundo. Se ela só ouve histórias de gente boa, vai se sentir deslocada, porque ela, como todo mundo, não é só boa. E vai então perder a chance de se conhecer melhor, de saber que nomes têm os seus sentimentos."

Um pouco de bom senso, contudo, não faz mal, acredita Ana Luísa. "É preciso verificar a idade do público. Crianças com menos de três anos acreditam piamente nas histórias, ficam impressionadas e podem perder a confiança em quem as conta, a professora ou a mãe. Evito contar histórias com muito sangue para uma plateia dessa faixa etária. Pode ser muito perturbador. A partir dos quatro anos, o entendimento é mais tranqüilo."

"Eu sou crítico do politicamente correto tanto na infância como no mundo adulto", afirma Brenman. Para o narrador, contar histórias é fazer um contraponto ao mundo atual também nesse sentido - no campo dos significados e da forma de ver a vida. Se o mundo atual é asséptico, as histórias devem carregar alguma sujeira, algo que seja um acréscimo e um complemento ao cenário que se tem hoje, algo que o amplie.

A pesquisadora Regina Machado acha "absurdo" o filtro moralista por que alguns passam as histórias. "A função de uma história é simbólica, não literal. Ela atua em níveis profundos, tem muitas camadas de compreensão. É absurdo um adulto achar que sabe o que a criança vai perceber dela. Ele não sabe. A criança muitas vezes não dá atenção à violência da história, ela tem outros focos."

Matéria 2 - Há um novo fenômeno musical em curso nas escolas brasileiras: as crianças estão aprendendo versões adaptadas das velhas cantigas de roda. O que chama atenção nessas músicas são as letras politicamente corretas, nas quais personagens do folclore nacional deixam de ser assustadores, animais são reverenciados e o desfecho das histórias cantadas é invariavelmente feliz.

Adaptações na letra de músicas folclóricas sempre ocorreram – no Brasil e no resto do mundo. O que merece atenção nesse caso é o fato de as novas versões terem passado a fazer parte do currículo oficial em escolas brasileiras – e ainda por cima serem apresentadas às crianças como mais corretas do que as músicas originais. Daí a polêmica em torno do assunto.

Um dos argumentos mais usados pelas escolas para ensinar as novas letras é que elas têm função educativa. Por essa razão, muitas vezes são apresentadas aos estudantes ao lado da versão original, com o objetivo de enfatizar a diferença entre as duas e, ao final, fazê-los concluir que a canção politicamente correta traz exemplos mais positivos a ser seguidos.

Sobre o Não Atire o Pau no Gato diz-se que a letra estimula os estudantes a desenvolver um senso de "responsabilidade ecológica". O Boi da Cara Preta tornou-se "do Piauí" para soar menos assustador. Os professores também estão deixando de cantar o velho "Cachorrinho está latindo lá no fundo do quintal " para colocar em seu lugar uma versão em que não se pede ao cão para "calar a boca" – e sim "ficar quieto". A razão para tal mudança? Enfatizar a idéia de que homens e animais devem ter uma convivência pacífica.

As letras originais estimulariam o "medo" e o "lado violento" das crianças.

Os críticos apontam pelo menos dois motivos para repudiar o novo movimento musical.

- O primeiro é que, ao arbitrar sobre o folclore, ele provoca um empobrecimento cultural.

-Segundo a literatura especializada, há registro da presença de canções infantis brasileiras protagonizadas por seres assustadores desde o século XVII.

As cantigas de roda em questão são a expressão de tradições antigas e funcionam como o espelho da época em que surgiram. Espera-se até que, ao longo dos séculos, adquiram novos coloridos regionais e tenham suas letras pouco a pouco alteradas. O mesmo ocorreu com contos de fada como Chapeuzinho Vermelho, escrito no século XVII pelo francês Charles Perrault, que ganhou inúmeras versões. Tanto o caso das cantigas de roda como o dos contos de fada ilustram a dinâmica da tradição oral.

O que os difere, segundo os especialistas, é um ponto básico: enquanto os contos mantiveram em sua essência as ambigüidades e os conflitos típicos da espécie humana, as novas versões para as cantigas de roda são assépticas e desprovidas de emoção. Pior ainda: elas são apresentadas, de forma arbitrária, como a expressão de um ideal de comportamento. "O fato de uma meia dúzia de intelectuais estipular o que é certo ou errado no caso das cantigas de roda contém dois problemas: é autoritário e leva a uma visão caolha do ser humano", resume o filósofo Roberto Romano.

A outra ressalva dos críticos da leva de cantigas politicamente corretas é que ela parte de um pressuposto equivocado: que as crianças são influenciadas pela letra das músicas. Estudos sobre o assunto indicam justamente o contrário: que o que mais atrai as crianças nas cantigas de roda do mundo inteiro são o ritmo e as brincadeiras que se originam a partir delas – e não o significado da letra. Foi o que constatou uma pesquisa conduzida pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, que perguntou a 3.000 crianças o que elas concluíam depois de escutar tradicionais cantigas de roda cujos personagens centrais eram seres assustadores: 83% responderam que nem sequer prestavam atenção à letra.

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